O ESCRITOR EM TRÊS CONTOS DE RUBEM FONSECA
Rubem Fonseca nasceu em 1925 em Juiz de Fora, mas viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro. Publicou seu primeiro livro em 1963, uma coletânea de contos chamada Os prisioneiros e desde então vem publicando contos e romances.
Sua obra tematiza a violência por meio de descrições gráficas, cruas e impactantes; Alfredo Bosi chama esse tipo de literatura de “brutalista” e Antônio Cândido de “realismo feroz”. Por tratar de crimes e ter como protagonistas personagens da esfera marginal da sociedade (miseráveis, prostitutas, criminosos, corruptos), suas tramas podem ser consideradas noir ou policiais. Embora a história noir e a policial tenham muitos pontos de confluência, costuma-se distingui-las: a hard-boiled que “retrata a população das metrópoles, seus gângsteres e suas mulheres sedutoras, sua polícia e seus políticos corruptos” (JEHAD), e em sua trama ainda há um crime a ser desvendado; enquanto no noir “o protagonista geralmente não é um detetive; ao contrário, é quase sempre uma vítima, um suspeito ou um criminoso.” (JEHAD). Rubem Fonseca segue mais a tradição americana de histórias hard-boiled, mas acaba articulando essas duas vertentes em sua obra.
Pierrô da caverna foi publicado na antologia O Cobrador, em 1979. O narrador-personagem, que é escritor, grava a história autobiográfica – entremeada em digressões – sobre um caso de pedofilia com o auxilio de um gravador. Tal como Humbert Humbert, de Lolita, o narrador (cujo nome não sabemos) vai usando a própria linguagem para convencer a si e aos outros de que o que sente é digno, elevado, puro. Mas ao contrário do narrador pedófilo de Nobokov, sua sedução pela linguagem se mostra um mosaico de digressões em meio ao relato que se propõe a fazer. Elas são importantes, tanto para a verossimilhança do falar e do pensamento em fluxo de consciência, quanto para a criação de paralelismos, que é onde o narrador se coloca em julgamento, se defendendo ao citar exemplo de grandes escritores também pedófilos: “A arte está cheia de meninas virando a cabeça de homens maduros, a de Malle, a de Nabokov, a de Kierkegaard, a de Dostoiévski.” (FONSECA, Pierrô da Caverna).
Outro aspecto importante é a preferência em narrar essa história pelo gravador de som, e não escrevendo. Sendo um escritor é ainda mais estranho que se possa pensar que um sujeito prefira ter uma confissão de um crime pela sua própria voz (mesmo que isso não fosse a intenção do narrador, ele expresse que vai jogar a fita no lixo). Embora o texto seja nos apresentado escrito, o recurso que emula a oralidade é mais um estilo narrativo do autor Rrubem Fonseca – poderíamos especular, tal como o suposto editor de Lolita, que a gravação foi encontrada e transcrita para o papel. Mas essa oralidade se mescla com a modalidade escrita: o narrador usa ênclise em vez da próclise, que é mais usual na fala; frases em grego - "Alectrion agones, alectriomachia". Mas também se vale do discurso indireto enquanto ele narra a história, sem que diga o tempo todo quem é que está falando; digressões; expressões idiomáticas:
Eu jamais escreveria inconciabilidade. Gosto de dizer macacos me mordam porque assim que meu pai vociferava quando ficava perplexo. Por que macacos e não escorpiões, ou cobras, ou cães que estavam mais à mão para mordê-lo? Nunca soube, meu pai era um homem misterioso. Ordem e progresso é meu mesmo. (FONSECA, Pierrô da Caverna)
O narrador então faz uma diferenciação entre o papel da literatura e seu desejo de contar essa história autobiográfica, recente – o relato termina com os acontecimentos daquele dia: "Apenas quero falar, e o que eu disser não será passado para o papel, e assim não tenho necessidade de buscar o estilo requintado que os críticos tanto elogiam e que é apenas um trabalho de ourivesaria." (FONSECA, Pierrô da Caverna). Sobre o risco de ter seu segredo exposto, podemos dizer que ele não expressa receio sobre sua reputação, e mal faz questão de esconder seu desejo por Sofia (o que mostra como, de fato acontece, pedófilos passam despercebidos pelos familiares da vítima).
E mesmo quanto ao assunto central que o narrador está nos contando, ele aparece aos poucos, com as referências à associação dos pedófilos, o assunto do livro que ele menciona ao namorado da ex-esposa, o caso de um pedófilo que foi agredido, até sabermos junto com Regina, sua namorada, do que se trata.
Embora o assunto seja o caso de pedofilia, o uso de um personagem escritor gera uma reflexão sobre a escrita e sobre o fazer literário - o que é evidenciado nas digressões. Vemos isso também nos contos H.M.S. Cormorant em Paranaguá e em Romance Negro.
Em H.M.S. Cormorant em Paranaguá, também de O Cobrador, Fonseca usa a figura do poeta Álvares de Azevedo para discutir identidade – “Quem sou?” inicia o conto - e o que significa ser poeta num país escravocrata. Em conversa com uma alucinação em forma de Lorde Byron, as questões literárias surgem. O narrador de Pierrô da Caverna comenta:
eu nunca seria capaz de escrever sobre acontecimentos reais da minha vida, não só porque ela, como aliás a de todos os escritores, nada tem de extraordinário ou interessante, mas também porque me sinto mal só de pensar que alguém possa conhecer a minha identidade. (FONSECA, Pierrô da Caverna)
O narrador de H.M.S. também concorda ao dizer "Como disse Byron, o bretão de alma de fogo, quem escreveria se tivesse coisa melhor para fazer? Ação, ação, isso é que é importante, não escrever, e muito menos rimar, vide a vida monótona dos escritores." (FONSECA, H.M.S Cormorant em Paranaguá). Ironicamente, a vida de Álvares de Azevedo, cheia de mistérios e boatos - como o de ter ido a um baile vestido de mulher - é matéria ficcional deste conto, assim como a vida do narrador de Pierrô da Caverna. Embora o envolvimento incestuoso com a irmã e a justificativa pelo comportamento de um escritor (Byron) estejam em segundo ou terceiro plano, ele também se liga ao tabu do primeiro conto.
Em Romance Negro (1992), Édipo não é apenas citado como tradição do romance policial - assunto discutido dentro do conto -, mas também remete ao conflito de identidade do protagonista escritor, John Landers, e o fratricídio que cometeu. É neste conto que Fonseca discute a tradição do romance policial a qual se filia. É como se o autor estivesse dentro do clube que os franceses do conto criaram para os autores de histórias policiais, questionando os motivos de estar nele. No Brasil, Rubem Fonseca é o grande responsável por elevar a literatura policial ao status da chamada “literatura séria”. E os contos que cito neste trabalho são ótimos exemplo de como Fonseca articula temas universais dentro de estruturas de um romance policial ou noir, utilizando elementos pós-modernistas, como a auto-paródia.
Em Romance Negro, o escritor Winner diz à Landers antes de morrer que "as palavras não são nossas amigas. Uma verdade simples: as palavras são nossas inimigas. Eu descobri tarde demais." (FONSECA, Romance Negro), e talvez o narrador de Pierrô da Caverna saiba disso e precise narrar sua história por outro meio, ainda que se utilizando das palavras.
__________________________________________________________________________Bibliografia
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. Editora Cultrix. 1975
CÂNDIDO, Antonio. A Educação Pela Noite & Outros Ensaios. Sao Paulo: Ática, 1989
FONSECA, Rubem. O Cobrador. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. E-book.
_____. Romance Negro e Outras Histórias. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, E-book.
JEHAD, Julio. Ética e estética do crime: ficção de detetive, hard-boiled e noir. XII Congresso Internacional da ABRALIC. UFPR – Curitiba, Brasil.18 a 22 de julho de 2011
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Editora: Objetiva, 2011. E-book.